Um Homem e seu Violão
Por Profa. Dra. Stânia Nágila Vasconcelos Carneiro
Ao chegar em Viçosa do Ceará, fui imediatamente cativada pela sua simplicidade e charme acolhedor. Pequena e tranquila, essa cidade serrana parecia ter sido projetada para oferecer uma pausa no ritmo acelerado da vida moderna. As ruas estreitas e bem cuidadas, ladeadas por casas de arquitetura tradicional, exalavam uma sensação de paz e familiaridade que poucos lugares transmitem. Cada canto da cidade, desde suas praças arborizadas até os pequenos comércios locais, convidava a uma observação mais atenta, revelando detalhes e histórias que, de outra forma, poderiam passar despercebidos. Senti como se estivesse entrando em uma cápsula do tempo. Os casarões antigos mantinham intactos as marcas de décadas passadas. Cada quarteirão parecia ter parado no tempo, com casas que, mesmo depois de mais de 80 anos, permaneceram do jeito que foram construídas. As fachadas desgastadas contavam histórias de uma época em que a vida parecia mais simples e as conexões humanas, mais fortes. A conservação das praças e dos edifícios me levaram a um verdadeiro museu a céu aberto, onde o passado e o presente se misturavam de forma harmoniosa.
A agradável sensação de estar em um lugar onde o tempo parecia desacelerar era palpável. Em Viçosa, o cotidiano se desenrolava com um ritmo que permitia apreciar cada momento, desde o calor das conversas entre os moradores até a tranquilidade dos passeios pelas ruas pacatas. É um lugar onde o simples é celebrado, e a beleza reside tanto nas pequenas coisas — como um café na calçada ou o sorriso de um transeunte.
Uma das praças chamou nossa atenção e decidimos parar por lá. O silêncio era quebrado apenas pelas conversas tranquilas dos moradores que circulavam calmamente, como se o tempo não tivesse pressa de passar. Sentamos em uma mesa externa de um barzinho e pedimos algo para comer e beber. Enquanto degustávamos, meu olhar se perdia nas construções ao redor, nos detalhes de cada casa, em como aquele lugar mantinha uma serenidade que é tão rara nas grandes cidades. O tempo parecia cristalizado ali, nos olhares dos moradores, nas calçadas onde o movimento era quase ritualístico, como se a pressa não tivesse ali chegado.
Fomos eu e meu marido atraídos por uma música que se destacava dos demais sons. O homem estava em pé em um canto, sozinho, dedilhando seu violão, com o olhar perdido em alguma paisagem invisível. Sua música não era para um público específico, era para a alma, para o momento, como se cada acorde fosse uma conversa íntima com ele mesmo, um diálogo silencioso com suas próprias emoções.
Aquela cena me tocou profundamente. Ele não parecia buscar aplausos, nem olhares admirados. Apenas se entregava à música, com uma simplicidade quase “desarmante”. O som do violão ecoava uma tranquilidade que eu não sabia que precisava naquele instante. Fui tomada por uma vontade de retribuir aquele presente inesperado, aquela paz momentânea que ele proporcionou. Pedi ao meu marido que fosse lá oferecer-lhe alguma quantia.
Mas, para nossa surpresa, ele rejeitou. Com um sorriso gentil, balançou a cabeça e continuou a tocar. A princípio, ficamos um pouco desconcertados, mas logo compreendemos: aquele homem não estava ali por dinheiro, mas por algo maior. Era como se sua alegria estivesse no ato de compartilhar sua música com quem estava disposto a ouvir, sem esperar nada em troca. Seu desprendimento era, ao mesmo tempo, humilde e grandioso.
Enquanto permanecia na praça, percebi que a música variava de forma encantadora. O repertório era vasto e nostálgico, começando com clássicos de um Brasil que ressoava tanto em suas melodias quanto nas lembranças de gerações passadas. Ele tocava músicas de Nelson Gonçalves, com aquela voz grave e cheia de saudade que parecia contar histórias de amores intensos e sofridos. Logo depois, suas mãos deslizaram pelas cordas do violão para trazer à vida canções de Fagner, transmitidas de emoção e poesia nordestina. Mas era ao cantar Belchior que ele parecia se entregar por completo, como se as letras de um dos maiores compositores brasileiros fizessem parte de sua própria alma. Cada verso soava como um eco de reflexões sobre a vida, o tempo e o que deixamos para trás à medida que seguimos em frente, carregando as marcas das escolhas, dos amores perdidos e dos sonhos que, de alguma forma, permaneceram pelo caminho.
A música de Belchior, especialmente, trazia à tona essa sensação de nostalgia e questionamento, como se cada nota fosse um convite para revisitar o passado e pensar sobre quem nos tornamos no presente. Enquanto ele cantava, era impossível não se perder em pensamentos, refletindo sobre as ilusões que cultivamos e as esperanças que, mesmo distantes, ainda nos impulsionam. Havia algo profundamente humano em sua interpretação, como se ele também estivesse em busca de respostas.
Ficamos ali, parados, ouvindo a música que saia do violão. Cada nota parecia carregar consigo uma história, uma emoção, um pedaço do homem que a tocava. Havia uma beleza rara na sua forma de tocar, uma espécie de leveza misturada com uma profundidade quase espiritual. O jeito como ele se entregava à música, sem pressa, sem pretensão, me fez refletir sobre a simplicidade das coisas que realmente importam.
Enquanto o vento balançava levemente as folhas das árvores, olhava ao redor e percebia que poucas pessoas notavam sua presença. Algumas passando apressadas, outras, distraídas, se concentravam em seus próprios assuntos. Mas ali, naquele pequeno canto da praça, existia uma espécie de mundo paralelo, onde a pressa e as preocupações do cotidiano não faziam sentido. A música nos transportava para um lugar onde o tempo parecia suspenso.
Lembrei-me de, algumas vezes, na vida corremos atrás de tantas coisas, acreditando que precisamos de mais para sermos felizes, quando, na verdade, talvez o que precisamos seja tão simples quanto aquele momento de paz proporcionado por um homem e seu violão. Ele tinha um pouco materialmente, mas sua riqueza interior, sua serenidade e generosidade com o que poderia oferecer, me inspiraram.
Enquanto me afastava da praça, ainda imersa naquela melodia e nos pensamentos que ela havia despertado, percebi o quanto somos moldados pelos momentos simples, aqueles que nos pegam desprevenidos e nos revelam algo novo sobre nós mesmos e sobre o mundo. A cena do homem tocando sozinho, sem alarme, sem expectativas, me acompanhava como um lembrete sutil de que a vida, muitas vezes, não precisa de grandes espetáculos para ser bela.
Refleti sobre como ele havia se tornado um símbolo de desprendimento e liberdade. Ele tocava por tocar, por uma alegria que vinha de dentro e que se espalhava naturalmente ao seu redor. Não buscava aplausos nem recompensas. Na verdade, ele parecia existir em uma espécie de plenitude que muitos de nós passamos a vida buscando sem, talvez, perceber que ela pode estar nas coisas mais simples: uma tarde tranquila, uma música, um sorriso sincero.
De alguma forma, aquele encontro breve me mudou. Me fez pensar sobre a maneira como eu venho vivendo, sempre tão preocupada com metas, com o futuro, com o que ainda estava por vir. E ali estava ele, mostrando, sem dizer uma palavra, que a felicidade verdadeira está no presente, no agora. É na entrega total ao que fazemos, na generosidade de doar-se ao próximo, mesmo que seja através de algo tão aparentemente modesto quanto uma canção.
E foi assim, ao som de um violão que continuava tocando em minha mente, que segui viagem, levando comigo a certeza de que, às vezes, a riqueza maior que podemos encontrar é justamente essa: a capacidade de estar presente, de compartilhar e de se alegrar pelo simples fato de existir e fazer parte deste vasto e belo mundo, onde os gestos mais humildes ainda podem deixar marcas.
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